Dinheiro, fama e mudança de hábito: profissionais
apontam falhas na base
Fracasso da seleção sub-20 acende discussão sobre o
comportamento de jovens e a influência que recebem antes de chegarem aos
profissionais
Em meio à disputa do Sul-Americano sub-20, na
Argentina, Mattheus é solicitado para dar entrevistas. Insatisfeito por ser
sempre lembrado como “filho de Bebeto”, ele avisa - via assessoria de imprensa
- que não falaria com jornalistas brasileiros e estrangeiros caso continuasse
tendo seu nome vinculado ao do pai. Rafinha, do Barcelona, também não gostava
de ser comparado com o pai Mazinho, companheiro de Bebeto na conquista da Copa
de 1994 com a Seleção.
Em Minas Gerais, Leleu é convocado para treinar com os
profissionais, ainda em 2012. Aproveita a oportunidade e aparece com novo
penteado, pintando o cabelo de loiro. A comissão técnica dá um puxão de orelha,
e o jogador retorna à atividade da tarde com um corte mais discreto. O brinco,
porém, não sai da orelha.
Um dos destaques do Santos na Copa São Paulo de
Futebol Júnior deste ano, Neilton costuma valorizar o visual, muito parecido
com o de Neymar. O mesmo faz Gabigol, que garante ter um moicano mais bonito
que o do craque santista.
Os exemplos são apenas alguns da atual geração sub-20,
que cada vez mais cedo ganha espaço entre os profissionais e destaque na mídia,
aumentando sua remuneração e o faturamento dos clubes com venda para o
exterior. A eliminação precoce da seleção no Sul-Americano da categoria - não
conseguindo ficar entre os três primeiros em um grupo de cinco - fez surgirem
críticas e dúvidas sobre o comportamento dos atletas. A primeira partiu do
próprio técnico Émerson Ávila, que afirmou:
- O jogador hoje em dia tem muito poder no futebol. Talvez
isso aconteça por concessões que o clube acaba fazendo.
Diante deste cenário, o GLOBOESPORTE.COM ouviu
jogadores, técnicos, dirigentes, psicólogos e empresários e visitou treinos dos
juniores dos quatro principais times do Rio de Janeiro, além de ouvir histórias
e depoimentos em outros clubes grandes do país. Jogadores se defendem,
treinadores apontam falhas em certas posturas, empresários tentam evitar jovens
problemáticos e psicólogos procuram estudar até a estrutura familiar para
traçar metas e evitar deslizes no meio do caminho. A ascensão meteórica e o
crescimento socioeconômico parecem ter mudado o comportamento dos jogadores na
base. E será que estão tomando o cuidado devido com eles?
- Eu acho que tem que trabalhar mais a cabeça de quem
os comanda. É muito fácil colocar a responsabilidade em cima dos moleques. Tem
que cobrar de quem os comanda, quem dá regalias, quem dá esses salários, quem
cobra deles. Depois que dá errado, é muito fácil dizer que o menino está
errado. É que nem um filho. Se você não educá-lo, depois não adianta dizer que
ele está errado. Essa é uma das minhas broncas no Inter - disse Dunga, ex-treinador
da Seleção e atual comandante do Colorado.
O Flamengo forneceu um exemplo de comportamento de
jovens da base e de quem os comanda. No fim de um treino no Ninho do Urubu, em
uma conversa entre juniores e recém-promovidos aos profissionais, Rodolfo conta
que, ao chegar de carro, o porteiro perguntou a ele e a Rafinha se eram atletas
- procedimento para a identificação de quem entra e sai do CT. Rafinha,
sorrindo, complementa que fechou o vidro da janela do carro e seguiu.
Os dois receberam de volta gargalhadas e a frase de um
dos integrantes da comissão técnica da base: “Ele não vê jornal?”. O episódio
foi dias antes da vitória por 4 a 2 sobre o Vasco, partida em que Rafinha de
fato se destacou.
- Nesse dia nós chegamos e demos bom-dia. Aí, ele (o
porteiro) nos deu a plaquinha (do estacionamento) e perguntou se éramos
atletas. Nós rimos e fomos embora. Passamos todo dia por ele, e via nossa cara.
Com certeza éramos atletas - contou Rodolfo.
A psicóloga dos juniores do Botafogo, Michele Melhem,
não citou casos específicos, mas explicou como agir no convívio diário ao ser
questionada sobre o excesso de brincadeiras das comissões técnicas com os
jogadores na base.
- É importante não perder a interação, a relação de
brincadeira, ainda mais nos juniores, porque consideramos que eles não estão
prontos. Mas é extremamente pertinente o que está dizendo, tem que saber a hora
de dar a bronca, ser mais duro, falar com seriedade. Mas a brincadeira existe
até no profissional, como um estilo para formar um espírito coletivo de grupo.
Brincadeiras à parte, os jogadores fogem do discurso
comum e monossilábico quando o assunto é o vai e volta da base. Quem tem a
possibilidade de treinar no time de cima costuma reclamar ao ter de retornar.
- O que atrapalha mesmo é o psicológico do jogador. A
gente almeja aquilo desde cedo, e, quando chega lá, tem que descer... O pessoal
desce até um pouco desanimado, porque quer ficar lá (no profissional) para
sempre - contou o lateral-direito Igor Julião, de 18 anos, que atua no
Fluminense e evita o estilo boleirão de se vestir.
O contato com ídolos é acrescido ao deslumbramento com
a nova vida. E os treinadores creem que isso foge do controle, acreditando que
pode existir certo descompromisso com a base.
- Às vezes eles pensam que viraram jogadores (profissionais).
Vemos acontecer essa falta de compromisso, ou com clube ou com a seleção
sub-20, o que nos deixa chateados. Aqui no Fluminense tentamos interferir no
processo. Não é fácil, tem muita coisa de fora que interfere. É uma briga de
cachorro grande. Nós queremos puxar para um lado e muita coisa puxa para outro
- opina Marcelo Veiga, técnico dos juniores do Fluminense.
Ideia parecida tem Cleber dos Santos, treinador do
Flamengo.
- Os jogadores estão sendo aproveitados muito
precocemente. Uma cobrança muito grande para os jogadores de 15 a 17 anos, de
apresentarem um rendimento de profissionais. E essa cobrança pelo rendimento
também altera o comportamento. Eles veem como espelho os jogadores do
profissional, que têm um comportamento diferente dos da base pelo salário, pelo
local onde moram, pelo status social. Então esses jogadores, quando começam a
ter esse tipo de cobrança, se acham no direito de se comportarem da mesma
maneira que os profissionais. Vejo que isso é uma bola de neve. Pela cobrança,
pelo espelho nos jogadores do profissional, que têm muitas regalias... Os
jogadores da base veem isso como uma forma natural, como tem acontecido
ultimamente - disse.
A possibilidade de maior remuneração é demonstrada de
diversas maneiras no mundo das categorias de base. Em um treino do Vasco, um
funcionário avisava que teria de conversar com Jhon Cley - que trabalhava com
os juniores após um período entre os profissionais. E ouve de outro jogador, em
tom de brincadeira: “Já vai sufocar”, uma maneira de dizer que faria um pedido
de ordem financeira. No Flamengo, houve episódio semelhante: um funcionário
aproximou-se da lateral e brincou com um atleta: “Quando estiver lá (no
profissional), vai me dar um carro de presente”.
Muito dinheiro
Então entra o dinheiro. Nos juniores, os atletas
recebem em média de R$ 2 mil a R$ 4 mil. Em casos extremos de promessas com
potencial, os salários podem alcançar valores próximos de alguns profissionais.
Isso faz com que se tornem comuns, em treinos dos jovens, tênis extravagantes e
chuteiras com cores chamativas - geralmente cedidos por fornecedores de
material com quem eles já têm contrato ou oferecidos pelos empresários - além
de celulares de última geração e cordões de ouro. E às vezes o comportamento
sai dos treinos e vai para as redes sociais.
Renan, apelidado de Panterinha por ser filho do
ex-atleta Donizete Pantera, postou no Twitter que havia gastado R$ 1.800 em uma
boate. Cobrado por alguns torcedores na rede social, o meia do Flamengo
respondeu com um novo post: “Não sou nenhum Adriano da vida, não! Não sei nem o
que é esse dinheiro. Era só zoação. Quem me dera ter 1.800”.
Atual treinador da base do Botafogo, Anthony Santoro
faz uma comparação com duas promessas do Fluminense da época em que trabalhou
por lá.
- O Lenny uma vez chegou a um treino com um Audi, um
carrão. Foi lá nos ver em Xerém. Ele não vinha de um momento bom no
profissional. Veio com a calça camuflada, cheio de cordão, óculos de dar inveja
em mulher. Falei que era o momento de passar despercebido. Disse: “O momento
não está bom para você. Chega mais tranquilo, reservado, para não virar o
holofote para você”. Ele só ouviu. No dia seguinte, chegou o Marcelo, com um
Peugeot 206, bermudinha tranquila. Ele quase saindo para o Real Madrid, e o
Lenny em um momento ruim, os dois no profissional. O Marcelo mais tranquilo,
reservado, e decolou. O Lenny até hoje não conseguiu - conta Anthony Santoro,
que também trabalhou no Flamengo e citou Bruno Paulo como exemplo de jogador
que se deslumbrou com dinheiro.
Vilão ou não?
Quem trabalha com a base costuma reclamar da ação de empresários.
Técnico do Flamengo, Cleber dos Santos diz que os jovens ganham mimos dos
agentes - às vezes para criar um vínculo - e perdem contato com a realidade
deles. Narciso, treinador do Palmeiras, cita o empresário que faz a vontade dos
clientes:
- O jogador não tem muito compromisso de brigar pela
posição. Deveria se desdobrar e provar que tem o mesmo nível do que está
jogando. Mas ele fala com o empresário, que o tira do clube e o coloca em
outro.
Os empresários de renome se defendem e garantem que têm
diminuído a ação nas categorias de base. Segundo eles, o mercado está aquecido
para quem acabou de entrar no ramo e oferece ajuda de custo, bens materiais e
pertences para cativar os meninos e criar um vínculo afetivo que os garanta
vantagem em futuras negociações de contrato.
- Estamos investindo pouco na base. Os empresários em
geral procuram pagar uma ajuda de custo. Mas é trabalhoso. Eu não tenho muito
jogador na base. Mas investimos. O grande problema são os treinadores da base.
Se tivessem nível de cultura melhor para trabalhar, ajudaria muito. São
geralmente ex-jogadores, que têm o mesmo vício que tinham quando eram
jogadores. Os clubes deveriam ter um trabalho melhor. Deveria haver um curso
para os treinadores da base - disse Léo Rabello, que tem entre seus jogadores
Thiago Neves, do Flu, e Bernardo, do Vasco.
Hábitos diferentes
Alguns jogadores tentam fugir de um comportamento que chame a atenção. Filho de médico, Carlos Daniel, de 18 anos, deixou Manaus para se dedicar ao futebol e divide treinos do Botafogo com a leitura e estudos. Aprovado na primeira fase da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele tinha o sonho de cursar medicina, mas não conseguiu fazer a segunda etapa por causa de um compromisso pelos juniores.
- Brinco, cordão, não gosto muito. Procuro sempre estar
na minha, para não puxar a responsabilidade para mim. Uma responsabilidade que
talvez ainda não seja minha. Mesmo quando estiver na mídia, na fama, vou
procurar ser o mais simples possível. Além de jogar futebol, procuro ser bom no
estudo também. Meu pai é médico e me incentiva muito para estudar, para ler - contou.
O pilar da família, aliás, é um dos principais pontos
observados por psicólogos.
- A base familiar faz o atleta se diferenciar nos seus
comportamentos, tanto de disciplina quanto de gerenciamento de carreira. O que
não significa questão econômica. Estou falando de base familiar, sistema
afetivo, emocional, de apoio, comunicação. Vemos pessoas de baixa renda, com
estrutura de família sólida, e o menino se destacando. A questão familiar faz
toda a diferença para se desenvolver no futebol - explica a psicóloga Michele
Mellen, do Botafogo.
E os conselhos deveriam perdurar, na opinião de Anthony Santoro, técnico da
base alvinegra:
- Sabemos que muitas vezes as coisas entram em um ouvido e saem pelo outro, mas
de tanto falar alguma coisa pode ficar.
Reportagem: Diego Rodrigues, Globo Esporte
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